quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

Baladas para o Rei

Olhas o céu, que é a flama azul do olhar de um santo.
Parece, até, que, de tão fluida, a luz é aroma…
E eu, vendo o céu lúcido assim, penso no pranto
De súlfur vivo que escorreu sobre Sodoma…
Olhas os ramos, na opulência e na indolência…
Lembras sazões, pomos, desejos e pecados…
E eu, nesses ramos, sinto a lúgubre cadencia
Da pendular oscilação dos enforcados…
Olhas a terra toda em flor… Falas na gloria
De messidores, de farturas, de celeiros…
Diante da terra, oiço a canção desilusoria
Da ronda triste e sonolenta dos coveiros…
Olhas o mar em que o oiro-azul do céu se estrela:
Não sentes, vendo-o, nem pavores nem presságios…
E eu, pelo mar, vejo os espectros da procela,
E as naus sem norte, os precipícios, e os naufrágios…
Olhas a Vida… E ouves, da terra aos céus, o coro
Propiciatório de alegrias e noivado…
Dos céus à terra, eu sinto as suplicas e o choro
Dos prisioneiros, ofendidos, degradados…
Diante da Morte, unicamente, se alevanta
Minha alma em luz, serena e só, tranqüila e forte…
E, diante dela, o seu louvor sem frases canta…
Que é que tu sentes, meu Irmão, diante da Morte?
Cecília Meireles
In: Baladas para El-Rei (1925)

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